Friday, November 30, 2012

Zé-do-burro e "a pior tentação"


Bonitão: “Que é que está esperando? Virar santo?
Rosa: Não brinque. Pelo caminho tinha uma porção de gente querendo que ele fizesse milagre. E não duvide. Ele é capaz de acabar fazendo. Se não fosse a hora, garanto que tinha uma romaria aqui, atrás dele” (Dias Gomes, O Pagador de Promessas, 41).

Zé-do-burro é tão humilde e cheio de fé que não duvido que ele poderia virar santo. Além disso, por alguma razão, é preciso que os santos sejam perseguidos antes de ser louvados. O mundo (ou neste caso, a igreja) não gosta dos santos até depois de sua morte. As ações dissidentes dos heróis incomodam às pessoas. A sociedade exige que eles sejam uma coisa, e para ser herói muitas vezes tem que ir contra o que a sociedade diz—contra a corrente. Por isso, Zé-do-burro é uma inspiração para Dias Gomes, o próprio autor, para Rosa, e também para os capoeiristas, representando em sua dança de guerra esta ideia de resistência às normas.

Esta citação me lembra de outra citação que lemos na aula este semestre. No conto “A Imitação da Rosa” por Clarice Lispector, a protagonista Laura é ‘tentada’ de não se conformar à sociedade na qual vive. Ela fala de como ‘imitar Cristo’ é perigoso e a pior tentação. “Ela sentira que quem imitasse Cristo estaria perdido—perdido na luz, mas perigosamente perdido. Cristo era  a pior tentação” (49). Eu penso em Zé-do-burro assim—perdido na luz porque imitou Cristo tão bem que a igreja (ironicamente) não podia o aceitar e acabou por matá-lo. Na adaptação da peça em filme, é óbvio a conexão intencional entre Zé e Cristo—as pessoas o seguindo, e especialmente a imagem dele morto na cruz, sendo levado finalmente dentro da igreja de Santa Bárbara.

Thursday, November 29, 2012

Central do Brasil


“Posso te dizer uma coisa? Voce fica muito mais bonita assim de batom. Muito mais!” (Central do Brasil)

No filme Central do Brasil, Dora é uma mulher que sofreu da ausência do pai. Parece que só existe uma pessoa com quem ela tem um relacionamento verdadeiro—a vizinha e amiga dela. Ela e Josué estão ligados no fato que os pais deles os têm abandonado. Josué, com seu coração de criança, ainda acredita que seu pai voltará e que ele não é nada daquilo que Dora insiste que ele é. Dora fala de experiência—da experiência amarga. Mas ocorre uma mudança de coração nela. Graças a Josué, ela consegue de novo ter esperança e fé, como uma criança, e no fim ela encoraja a Josué a acreditar na volta de seu pai.

Uma das coisas que eu gostei mais no filme era a feminidade que Dora acaba por encontrar. O motorista de caminhão a inspira inicialmente a explorar esse lado dela. Ela pede para usar o batom de uma mulher no banheiro. Mas ela nunca é dada a oportunidade de sentir bonita, pois o motorista, cheio de medo de um compromisso sério com ela, também tem abandonado ela no meio do sertão. Outra desilusão com os homens. Mas um homenzinho repara na aparência dela. Josué proclama que ela fica muito mais bonita de batom. Mais tarde ele escolha um vestido para ela, declarando que era para ela ficar mais bonita. Numa conferência recente, Presidente Thomas S. Monson falou, “Every woman deserves to be told she is beautiful”. Dora finalmente recebeu isso na forma de Josué e encontrou uma nova felicidade e uma nova expressão de sua feminidade, simbolizada pelo batom e o vestido.

Friday, November 16, 2012

Ungulani Ba Ka Khosa


     No dia 07 de novembro, o famoso autor moçambicano, Ungulani Ba Ka Khosa, deu uma palestra no JKB ao meio-dia. Além de ser um homem bem amável, Ungulani é escritor do romance Ualalapi, considerado um dos melhores romances africanos do século XX. Ele falou dos muitos idiomas que se encontram em Moçambique e como o português, sendo a língua oficial do país,  vai ter que incorporar todos os valores do povo numa língua só. Ungulani falou de algumas das experiências que talvez levassem ele a ser escritor, mas ele confessa abertamente que não sabe a razão de ele ter sido inspirado para ser escritor. As experiências e ideias que ele compartilhou me inspirou a aprender mais sobre Moçambique—sobre sua cultura, história, e literatura.

"Machado de Assis' Narrators: Beyond the Problem of Reliability"


     No dia 01 de novembro, Paul Dixon deu um discurso aos 11 horas no JKB. O título do discurso era “Machado de Assis’ Narrators: Beyond the Problem of Reliability”. Paul Dixon é professor na Universidade de Purdue e é um famoso crítico da obra de Machado de Assis. Tive a oportunidade de tomar o mini-curso que ele ofereceu durante a semana de sua estadia aqui na BYU. No discurso deste dia, Paul Dixon falou dos narradores indignos de confiança que Machado de Assis às vezes emprega nas suas obras. No século XIX, um tema popular dos romances do movimento de Realismo era o adultério. Mas Machado acrescenta um elemento de ambiguidade. Por exemplo, no seu romance Dom Casmurro, não é claro que realmente houvesse algum adultério. O narrador, Bento, é indigno de confiança. Nos casos assim, temos que insertar nossa própria mensagem na lacuna que o texto deixa, segundo Paul Dixon. Isto requer mais do leitor. Por isso, Dixon fala que gosta tanto de Machado—é um autor que não quer que seus leitores sejam passivos. É um autor que faz perguntas em vez de dar respostas. Fica conosco a responsabilidade de providenciar as respostas. Me ensinou uma nova maneira de ler—de ser um leitor ativo.

Thursday, November 15, 2012

O Marinheiro


“Toda hora é materna para os sonhos, mas é preciso não o saber. . . Quando falo demais começo a separar-me de mim e a ouvir-me falar. Isso faz com que me compadeça de mim própria e sinta demasiadamente o coração. Tenho então uma vontade lacrimosa de o ter nos braços para o poder embalar como a um filho. . . O dia nunca raia para quem encosta a cabeça no seio das horas sonhadas” (Fernando Pessoa, O Marinheiro, 119).

Existe nesta peça de Fernando Pessoa uma tristeza intensa. Um senso de nostalgia profunda permeia o texto. Num caixão no centro no palco jaz uma donzela branca. Ela ocupa o espaço central do palco, mas a presença dela nunca é explicada. Mas a morte e a existência formam o argumento central da peça. A donzela morta representa os medos e as incertezas que estas três irmãs estão enfrentando. A existência além da morte parece difícil de aceitar quando nem tem certeza da existência na vida.

Este trecho contém uma ideia fundamental do texto. O dia nunca acaba nem começa para aqueles que vivem nos sonhos. Eu acho que as tristezas da vida levaram estas três mulheres a buscar alívio nos sonhos. Tanto elas viveram nos sonhos que nem sabem o que é sonho e o que é realidade. A realidade começou a perder seu significado. Recentemente eu assisti a um filme que se tratou dos antros de ópio do século XIX. Os sonhos que o ópio causou muitas vezes eram preferíveis à realidade para as pessoas. Então os viciados saíram da realidade para viver nesses sonhos. É interesante que, ao mesmo tempo que estas donzelas temem morrer, elas também temem viver.

Thursday, November 8, 2012

O Pagador de Promessas


“Como Zé-do-Burro, cada um de nós tem suas promessas a pagar. A Deus ou ao Demônio, a uma Ideia. Em uma palavra, à nossa própria necessidade de entrega, de afirmação” (Dias Gomes, nota do autor em O Pagador de Promessas, 15).

Zé-do-Burro recebe várias oportunidades de renegar e deixar de cumprir a sua promessa. Mas ele insiste em fazer tudo certinho—como foi prometido para Santa Bárbara. Eu gosto da personagem de Zé-do-Burro, mas ao mesmo tempo fico confusa ao ver a obstinação dele. Ele é muito teimoso. Talvez por essa razão tenha mais em comúm com o seu burro do que a amizade. O leitor não entende completamente o significado do burro para este homem humilde e dedicado, mas sabemos que a promessa feita tem grande significado para ele.

De modo similar, Dias Gomes está nos dizendo que cada um de nós tem nossas promessas a pagar. Para cada pessoa é diferente. Mas será que estamos dispostos a dar tudo para cumprir essas promessas? Reparei que as pessoas que eu gosto mais na obra são as pessoas que cumprem as suas promessas, sejam quais foram os obstáculos. Eu gosto da lealdade inicial de Rosa, acompanhando o seu marido na jornada. No caminho, no entanto, ela deixa de pagar as suas promessas e inflige muita dor em várias pessoas. Bonitão é exemplo de um homem que não paga promessa nenhuma—nem para a mulher que o ama (Marli), nem para Zé-do-Burro.

Thursday, October 25, 2012

“Evocação do Recife”


“Recife . . .
                        Rua da União . . .
                                                            A casa de meu avô . . .
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade

Recife . . .
                        Meu avô morto.”

(Manuel Bandeira, de “Evocação do Recife”, 228)

Manuel Bandeira usa muita reticência (aqui indicada pelo uso da elipse) no seu poema “Evocação do Recife”. Este trecho do fim do poema é um de meus prediletos. O poema inteiro é saturado pela nostagia, e esta parte mais do que qualquer outra. Sugerindo com as elipses que existem coisas que nem dá para explicar, o poeta liga Recife com a casa de seu avô, a quem ele aparentemente amava, e explica como parecia que tudo nunca ia acabar. E em vez de dizer, “Porém, acabou”, ele nos transmite esta mensagem com a frase final: “Meu avô morto”. Sentimos a tristeza do poeta, e entendemos que ele também está falando da morte de algo além do avô: a morte de seu amado Recife como ele conhecia.

Eu gostei da evocação de som no poema. Ele cria espaço branco dentro da frase, “De repente      nos longes noites um sino”, como se fosse realmente um sino repicando. Cria as vozes do passado nas brincadeiras e canções das crianças. Até a palavra “Capibaribe” repetida várias vezes no poema cria uma atmosfera de música feliz, quase como uma frase mágica que vai trazer de volta tudo que foi perdido e aliviar aquela nostalgia profunda.




Friday, October 19, 2012

African Worlds: Lectures on Africa and the Humanities at BYU


Ontem, 18 de outubro, aos 11 horas na sala 238 do HRCB, Ana Caterina Teixera veio para fazer um discurso intitulado “The Missing Protagonists: Revisiting the Role of Cubans in Angola’s Post-Independence Literature”. Ana Caterina é professora de português no MIT e fez seus estudos pós-graduados na Universidade de Brown. Ela tem pesquisado a história lusófona da África, especialmente Angola, e nos explicou quanto a literatura tem a ver com a história, ou a política, de um país. De acordo com as pesquisas dela, Angola atingiu uma identidade distinta de Portugal primeiro na literatura, e depois na realidade political. Angola, a maior de todas as ex-colônias de Portugal, recebeu ajuda de Cuba para conseguir a sua independência. Apesar disso, em algumas obras literárias chaves desta época, nenhuma personagem cubana aparece. Este discurso me deixou com uma ideia de quanto que ainda não conheço no mundo. Abriu a minha visão e me fez compreender o poder que reside na pena. “A pena é mais poderosa do que a espada”. Tem o poder de unir o povo debaixo de uma ideologia. “O que é determinante para a unidade é a ideologia e não a geografia”.

Thursday, October 18, 2012

“Ó poesia sonhei que fosses tudo"


“Ó poesia sonhei que fosses tudo
E eis-me na orla vão abandonada
Uma por uma as ondas sem defeito
Quebram o seu colo azul de espuma
E é como se um poema fosse nada”
(Sophia de Mello Breyner Andresen, [sem título], 218).

Eu adoro este poema. O mar é tudo para Sophia de Mello Breyner Andresen. Simboliza tantas coisas—a criação entre elas. Neste poema o mar também simboliza um tipo de abandono. Na orla, a mulher (imagino que é mulher) é deixada entre a beira da terra e da água. “Terra de ninguém é onde eu vivo”, Sophia escreveu em um outro poema. Aqui as circunstâncias têm deixado o narrador em terra de ninguém. As ondas que ela fita vão rolando ‘sem defeito’, perfeitas no seu movimento. E ela, deixada sem rumo, até perde o consolo que a poesia lhe trazia. Para ela, imagino que a poesia dever significar a expressão de emoção forte e a renovação ao expressá-la. Mas, solitária na orla, ‘é como se um poema fosse nada” em comparação com os sentimentos com as quais ela está lutando. Ela também poderia estar dizendo que a poesia é nada em comparação com o mar, eterno e belo.

A poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen tem um tipo de nostalgia. Ao ler, quase me parece que eu já li em algum lugar, talvez quando era criança. Eu acho que tenho este sentimento porque ela consegue transmitir tão perfeitamente emoções profundas que são universais na geografia e no tempo. É como se fosse redescobrindo a sua própria natureza nas páginas.

Thursday, October 11, 2012

"A valsa"


"Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranqüila,
Serena,
Sem pena de mim!"

(Casimiro de Abreu, “A valsa”, 128-129)

Adorei a música que se encontra neste poema. A rima constante e versos de três sílabas dá a impressão de realmente estar em uma valsa. Se captura o movimento no poema nos verbos: corrias, fugias, saltavam, voavam, brincavam, tremias, sorrias. Se empregam muitas rimas pobres (palavras da mesma classe gramatical) por causa da quantidade das rimas. É um ritmo feliz e despreocupado, colocado em justaposição com a dor e sofrimento do narrador.

O amante é aparentemente jovem e muito vulnerável à dor da amada mulher inconstante. Ele examina o rosto dela—os olhos, o cabelo, a sorrisa. Em um só instante, Casimiro de Abreu nos conta uma história que todo o mundo reconhece. Falecido aos 21 anos, Casimiro de Abreu tinha “uma perspectiva adolescente [do amor romântico] . . . exprimindo tanto o medo, quanto as fortes paixões” (Frederick G. Williams, Poetas do Brasil, 126). Neste poem, ele captura perfeitamente nos versos a vulnerabilidade que o amor traz, e o medo do amor que não é correspondido.

Thursday, October 4, 2012

"O morcego"


“A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptívelmente em nosso quarto!”
(Augusto dos Anjos, “O morcego”, 214).

A poesia de Augusto dos Anjos pertence à época de Realismo e Naturalismo, que começou em 1881 no Brasil. Ele, conforme as características deste movimento, queria explicar os por quês da vida por meio da ciência. Segundo ele, o comportamento do humano podia ser compreendido só no contexto do ambiente na qual se encontrava e as regras científicas que governavam a mente e os hábitos. Sabendo disso, ficamos mais prontos para entender o soneto “O morcego” por Augusto dos Anjos.

Usando como metáfora um animal (ao qual nós normalmente atribuímos uma natureza fixa), Augusto dos Anjos explica o que é a consciência humana. Como todos os sonetos, tem catorze linhas. É um soneto italiano, pois é composto de 8 linhas, que têm um esquema de rima (neste caso, ABBA BAAB) e 6 mais linhas com outro esquema de rima (CDE CDE). A interpretação e o ponto crucial do poema se econtram nas últimas linhas aqui citadas. À noite, a consciência muitas vezes vem para nos perturbar. Nossos pensamentos mais escuros e desaminadores vêm nos mordendo como este morcego. Ficamos apavorados apenas pelo toque do ‘animal’. E por mais que nós façamos, Augusto de Anjos fala, este animal faz entrada na nossa cabeça. É um comentário da psicologia do homem e como há coisas que ficam além do poder dele para mudar, coisas imutáveis da natureza—assim como o morcego não tem poder para mudar a sua natureza.

Thursday, September 27, 2012

A crônica


Os professores incutem muitas vezes nos alunos (inclusive sem querer) uma falsa idéia de seriedade; uma noção duvidosa de que as coisas sérias são graves, pesadas, e que conseqüentemente a leveza é superficial. Na verdade, se aprende muito quando se diverte, e aqueles traços constitutivos da crônica são um veículo privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visão das coisas” (Antonio Candido, “A vida ao rés-do-chão”, 27).

Esta ideia que o cotidiano pode se transformar numa coisa divina e inspiradora me destacou ao aprender sobre o gênero da crônica. Os melhores exemplos desta transformação, ao meu ver, são as crônicas que lemos de Clarice Lispector.

Na crônica “O milagre das folhas”, o narrador conta sobre a experiência de ter uma folha de um árvore cair nos cabelos dela. Quem de nós não teve essa experiência? É uma coisa tão comum que nem pensamos muito no acontecimento. Mas se nos dermos mais atenção, poderiamos ver nesse momento cotidiano uma coincidência tão sublime que é milagre. Acharemos “Deus de uma grande delicadeza”.

O chicle é nossa coisa comum que está para se transformar em “Medo da Eternidade”. O narrador, ainda muito pequena, prova chicles pela primeira vez. Ela fica empolgada ao saber da irmã que esta bala nunca vai se acabar. Mas, ao masticar o chicle, o gosto começa a ficar insosso e ela começa a ter medo da ideia de alguma coisa sempre existindo. Ela deixa cair o chicle e fica aliviada que não tem mais “o peso da eternidade sobre [ela]”.

De duas coisas cotidianas, Clarice Lispector consegue contemplar o divino e a eternidade.

Thursday, September 20, 2012

"Conto (não conto)": Nós e o gorila

“Às vezes, porém, aqui é tão monótono que se imagina ver um vulto que se move por detrás dos arbustos. Alguém que passa, agachado? Um fantasma? Mas como, se há soluços? Por acaso soluçam os fantasmas? Mas o fato é que, de repente, escutam-se (ou se acredita escutar) esses lamentos, uma angústia quase silenciosa.


Ah, já sei: um menino perdido, a chorar de medo. Ou talvez um macaquinho perdido, a chorar de medo. Ah, apenas um macaquinho, vocês respiram aliviados. Mas quem disse que a dor de um macaquinho é mais justa que a dor de um menino?


Mas o que estão a imaginar? Isso aqui é apenas um menino—ou macaquinho—de papel e tinta. E, depois, se fosse de verdade, o menino poderia morrer mordido pela cobra. Ou então matar a cobra e tornar-se um homem. No caso do macaquinho, tornar-se um macacão. Um desses gorilas que batem no peito cabeludo, ameaçando a todos. Talvez porque se recordasse do medo que sentiu da cobra” (Sérgio Sant’Anna, “Conto (não conto)”, 97-98).


Ontem na biblioteca eu ouvi uma mãe explicando para seu filho que não-ficção significava que não era falsa, e a ficção significava que era falsa. Lembro-me de ter aprendido isso na primária, mas depois de uma conversa a respeito deste conto na aula, não acho mais que é bem assim. Neste conto, o narrador nos lembra vez após vez que esta história é apenas uma história fictícia. Mas, ao repetir isto, parece que ele está dizendo que é sim algo mais que apenas um conto. É algo bem real e supremamente verdadeiro.


Nós, ao ler sobre um menino soluçando, sentimos pena dele. Por quê? Se ele é apenas uma personagem no conto—apenas “papel e tinta”? Porque nós também sabemos o que é soluçar num lugar solitário. Este menino é de papel e tinta, mas ele representa muitos meninos, muitas pessoas que são de carne e osso. É a universalidade de sentimento e experiência que nos unifica a pesar do lugar ou do tempo. Nos unifica até com o macaquinho, pois qual de nós não conhece a vulnerabilidade que faz o gorila bater no peito, ameaçando ao mundo, dando a aparência de força, porque lembra bem o medo sentido ao aparecer fraco?

Thursday, September 13, 2012

"O Enfermeiro"


“Como o silêncio acabasse por aterrar-me, abri uma das janelas, para escutar o som do vento, se ventasse. Não ventava. A noite ia tranqüila, as estrelas fulguravam, com a indiferença de pessoas que tiram o chapéu a um enterro que passa, e continuam a falar de outra coisa” (Machado de Assis, “O Enfermeiro”, 51).

Este verão eu estudei as obras de Anton Tchekhov para uma aula na universidade. "O Enfermeiro" me lembrou bastante de um conto dele chamado “Sonhos” em que uma menina de 13 anos trabalha de enfermeira para um bebê. Os empregadores e pais do bebê abusam ela fisicamente. Ela é requerida ficar quase a noite inteira sem dormir para cuidar do filho deles, que chora a noite toda. Ela fica tão cansada e abatida que certa noite, delirante de cansaço, ela vê que é o bebê que a impede de dormir . . . e o sufoca.

Machado de Assis (1839-1908) escreveu durante a  mesma época que Anton Tchekhov (1860-1904). Os dois se encaixam bem no movimento realista. Esta passagem do conto ilustra bem uma característica que eu sempre associava com Tchekhov, isso é, a indiferença da natureza. Procópio, depois de ter esganado o coronel, fica aterrorizado e abre uma janela, querendo escutar o vento para ficar mais calma. Mas a noite está completamente indiferente à sua angústia. Tranquila, ela quase zomba do desespero dele.

Thursday, September 6, 2012

"A Cartomante"


“Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro” (Machado de Assis, “A Cartomante”, 28).

Nesta passagem se consegue ouvir a voz do próprio narrador—Machado de Assis. Ele fala até com sarcasmo, rindo um pouco das condições nas quais muitas vezes os seres humanos se acham. Eles não têm a intenção de fazer uma coisa, mas no final eles se deixam levar pelos seus sentimentos. Camilo sentiu muito e pensou pouco. O Romantismo era uma época na qual os autores valorizavam a emoção acima da razão. Se Camilo fosse criado nesta época, ele teria sido apresentado como um herói da literatura. Porém,  Machado de Assis pertence ao movimento de Realismo, que era uma reação ao Romantismo. O realismo dava valor ao racionalismo. “A Cartomante” poderia ser visto como um conto advertindo contra a emoção descontrolada. As vezes, por mais difícil que seja, temos que compreender que nossos medos são reais. Temos que confrontar nossos medos e as consequências de nossas escolhas em vez de procurar alívio deles na irracionalidade, no sonho, na mágica.

Mesmo que o conto é trágico, Machado de Assis mostra uma certa quantidade de humor e de entendimento. Ele conhece as fraquezas dos homens. As compreende. Mesmo não gostando das fraquezas e da ignorância das pessoas, ele as representa com compreensão e empatia.